7.08.2004

Senhoras e senhoras. Seguem as duas últimas cenas da peça, que trocou de nome e agora se chama "Faltou Elvis no nosso Rock n Roll"

CENA NOVE
Clara: Não dá mais? É assim, então, você vai fugir?
Pedro: Não estou fugindo.
Clara: Ir para a França e deixar tudo para trás é fugir, sim, senhor. Cara, pára e pensa. Vai deixar sua vida toda aqui, seus amigos, família, até a merda do seu aquário, que você gosta tanto.
Pedro: Não, esse eu pretendo levar. Vou levar minha coleção de quadrinhos do Will Eisner e eu vou levar o meu videogame. Sem esquecer do meu skate.
Clara: Cara, pára e pensa, puta que pariu, não dá para levar peixinhos dourados no avião. Eles morrem.
Pedro: Que merda.
Clara: Acho que você vai ter que ficar.
Pedro: Pelos peixinhos?
Clara: É.
Pedro: Ficou louca. Eles ficam, então. Aliás, eles vão ficar com você.
Clara: Eu não gosto dos peixinhos.
Pedro: Gosta sim e vai ser um jeito de se lembrar de mim todos os dias.
... ...
Clara: Por que você decidiu essa merda toda?
Pedro: Pensa bem, quando eu iria poder estudar, fazer meu mestrado fora do país? Quando eu tivesse filhos, fosse casado e dono de um apartamento em Pinheiros?
Clara: Mas e a Júlia?
Pedro: O que tem ela?
Clara: Vai largar ela aqui?
Pedro: Vou.
Clara: E você não vê problema nenhum nisso?
Pedro: Um pouco, quer dizer, vai dar saudade, mas ela tem que entender que eu preciso estudar, fazer um MBA na França. E eu estava conversando com aquela minha amiga sueca...
Clara: A Elin.
Pedro: Sim, ela mesmo. Enfim, ela me disse que é super fácil estudar na França. Ela está morando em Paris e ofereceu dividir o apartamento com ela.
Clara: É assim? Você está indo para Paris para comer uma sueca?
Pedro: Não. Claro que não. Primeiro os estudos, quer dizer, se rolar alguma coisa, legal.
Clara: Nossa, você é realmente um babaca.
Pedro: E tem mais, eu vou arrumar um trampo por lá e fazer minha inscrição na universidade. A Elin disse que é super fácil.
Clara: Cara, é fácil porque ela é européia. Você é brazuca!
Pedro: Mas a Elin disse...
Clara: A Elin disse, a Elin disse. Vai tomar no cu com essa Elin.
Pedro: Qual o seu problema?
Clara: É você não pensar bem o que está prestes a fazer.
Pedro: Olha, você me conhece, eu fico entusiasmado com as coisas, mas no fundo, sei que vai ser difícil, mas não é impossível.
Clara: Cara, você vai ter todo esse trabalhão, esquecer da sua vida aqui no Brasil, para tentar comer uma sueca?
Pedro: Você está perdendo o fio da meada. Vou estudar na França e por acaso dividir um apê com a Elin. E, além do mais, não vou esquecer da minha vida, vou estacioná-la um pouco para avançar o farol vermelho em pleno Quartier Latin.
Clara: Você está gostando dessa idéia?
Pedro: Estou.
Clara: Sério mesmo?
Pedro: Mais do que tudo!
Clara: E a grana.
Pedro: Não é esse o problema?
Clara: E qual é?
Pedro: Acho que deixar tudo para trás...
Clara: E eu?
Pedro: O que tem?
Clara: Como eu fico?
Pedro: Você vai ser o meu porto seguro. Se você desabar eu desabo, seu você sentir saudades, eu vou sentir. Mas se você agüentar as pontas eu também vou aguentar.
Clara: Não (chorando) faz isso.
Pedro: Clara, você é a minha melhor amiga, melhor companheira, meu porto de felicidade. Vai dar tudo certo.
Clara: Fácil para você falar. Você quem está indo embora.
Pedro: Não é para sempre. E eu preciso te dizer uma coisa.
Clara: Fale!
Pedro: Preciso te explicar a verdadeira razão dessa minha busca profissional.
Clara: Comer a sueca?
Pedro: Porra, Clara presta atenção, nada disso.
Clara: Então, fala logo, seu merda!
Pedro: É o seguinte: nos últimos dias eu passei a me sentir mais próximo de você.
Clara: Bobo, a gente sempre foi próximo.
Pedro: Você quer me ouvir? Enfim, dessa vez parece ser diferente. Não sei se é por causa dos problemas com a Júlia, não sei se é besteira minha, mas tenho me sentido mais próximo de você. Parece que tudo o que aconteceu nos últimos dias tinha um significado. E eu fiquei muito preocupado e com medo depois que caiu a ficha.
Clara: Qual ficha?
Pedro: Da Jukebox chamada minha cabeça. Enfim, eu percebi que a sensação de querer estar próximo de você caminhava ao lado da sensação de me afastar da Júlia e do crescimento de meu ciúmes em relação a você e o César.
Clara: Do que você está falando?
Pedro: Eu não estou falando nada. Estou dizendo apenas que muitos sentimentos vieram ao mesmo tempo, sentimentos que eu não saberia lidar. A conclusão que eu cheguei é que esse é um momento para eu cuidar dos meus estudos, da minha vida profissional. Só longe disso tudo, eu poderei realmente me concentrar nos estudos.
Clara: Eu acho que preciso te confessar algo também.
Pedro: Clara, eu acho melhor não. Sinceramente, complicar as coisas agora não é a resposta. Essas coisas merecem racionalidade. E acho, quer dizer, tenho certeza, que ambos estamos emocionalmente fudidos para avançar o farol vermelho.
Clara: Mas Pedro, me ouça...
Pedro: Caralho, eu não vou conseguir lidar com nada disso agora. Por favor, eu quero a partir de agora me concentrar nos estudos. Somente nos estudos.
... ...
Pedro: Eu só vou te pedir uma coisa.
Clara: Qualquer coisa.
Pedro: Larga o César. Ele é um babaca e você não gosta dele. Você está usando o filho da puta.
Clara: E eu posso te pedir uma coisa?
Pedro: Claro!
Clara: Volta.


CENA DEZ
Pedro: Eu gosto de você, mas às vezes eu pareço um idiota. Sempre tentando parecer inteligente, quando, na verdade, te trato mal. Depois de tanto tempo, as coisas tornaram-se banais, só que não deveriam ser assim. Parece que não estamos mais sintonizados. Puta que pariu, estou de saco cheio de sair à rua acuado e achar que a minha vida não vai dar certo, ou que minha vida é um seriado e que no final tudo vai dar certo: viverei num mar de rosas, imerso num verdadeiro romance com Frank Sinatra de trilha sonora. Mas as coisas na vida real não são assim.
Não sei como posso ficar contigo se eu odeio suas palavras mal tratadas de vinho barato numa noite de sexo. Ao mesmo tempo não sei ficar sem o seu mal-humor, sem sua reclamação sobre meus palavrões que uso para amaldiçoar um ataque mal concluído, uma defesa mal feita ou um juiz safado quando assisto a um jogo do Palmeiras. Você faz falta demais sem sua imponência, sua altivez, sua maneira de deixar tudo triste e alegre ao mesmo tempo. Eu adoro o jeito que você faz da minha vida um inferno, quando estou num marasmo preguiçoso. Eu adoro o jeito que a gente trepa, eu adoro o jeito que você segura seus gritos de prazer. Eu adoro como seus olhos mudam de cor à noite. Eu adoro a maneira como uma luz artificial incide sobre sua face e destaca suas bochechas rosadas. É complicado te agüentar reclamando do cabelo e da pedicure, que sempre não apara direito suas cutículas. Mas eu adoro seu toque com as unhas feitas, cheio de carinho, paixão, ternura, um tocar lascivo, impudico, carnal.
Júlia: O que você está querendo dizer com tudo isso?
Pedro: Eu quero dizer que, em algum momento, a gente se perdeu pelo caminho da vida. E por isso acho que esse é o melhor momento de sair em busca do aprimoramento da minha vida profissional. Não tenho tempo para pensar em relacionamento afetivo.
Júlia: Como assim?!?
Pedro: Estou indo para Paris. Estudar. Fazer meu mestrado, sei lá. A Elin me convidou...
Júlia: Você ficou louco? Quem é Elin?
Pedro: Aquela minha amiga sueca. Ela está morando na França.
Júlia: Cara, você ficou louco. Não é possível. Elin, que caralho de Elin. Você está indo para lá só para comer uma mina sueca. Você será um babaca se gastar milhares de reais por uma buceta sueca. E eu seu idiota, como eu fico?
Pedro: Júlia, cala boca. E me escuta:
Júlia: Vai pro inferno, você e sua sueca de merda! Eu vou sair com aquele amigo australiano que está passando uma temporada aqui.
Júlia tenta ir embora, mas Pedro agarra os braços de Júlia e não a deixa.
Pedro: Você não tem amigo australiano. E me escuta. Dia desses, li uma carta de um autor de peças e achei foda o texto que ele escreveu para a namorada. Era alguma coisa parecida com isso: “Em um relacionamento não tem esse negócio de mar de rosas. É tudo muito foda, foda mesmo. Porra, mas se no final do dia a gente agüentar o tranco já valeu a pena. Simples assim.”
Júlia: Simples assim?
Pedro: Acho que sim. Mas chegou um momento em que passei a me questionar se o dia valia a pena.
Júlia: Por que você não falou nada? Por que você foi atrás de uma Elin qualquer?
Pedro: Sei lá, Júlia. E, PUTA QUE PARIU, esqueça a Elin. Ela não tem nada a ver. Ela só foi o clique que faltava. Presta atenção caralho. Eu preciso de um tempo para me concentrar, sem ter minhas elucubrações enviesadas. E esse tempo eu só conseguirei com o meu mestrado.
Júlia: Você é um babaca!
Pedro: Pode até ser, mas acho que isso, nesse momento, é o melhor a se fazer.
Júlia: Caralho, por que?
Pedro: Porque aqui no Brasil as coisas estão ficando melhores, o mercado está se reaquecendo. Acho que posso arranjar um emprego bacana com um mestrado na França depois que eu voltar.
Júlia: E precisa de mestrado na França para arranjar emprego no Brasil?
Pedro: Claro, você acha que administrar uma empresa precisa do que?
Júlia: De experiência? Você nunca trabalhou como executivo!
Pedro: Óbvio que não, eu não tinha um MBA na França!
Júlia: Você acha que esse é o único problema?
Pedro: Bem, não é só esse... É porque eu não sei falar inglês direito.
Júlia: E se você aprender inglês na França tenho certeza de que ele continuará uma bosta.
Pedro: Meu, lá eu vou estar muuuito mais perto da Inglaterra. Posso tirar uns finais de semana, atravessar a Mancha e fazer uns cursos de inglês básico.
Júlia: Só se for a Mancha Verde. Pedro, olha para mim e diz que você vai buscar um aprimoramento da vida profissional.
Pedro: Claro que vou. Fazer o meu MBA, aprender inglês e de lambuja um francês.
Júlia: E eu?
Pedro: Você é a minha namorada e tem que entender que esse é o melhor momento para eu fazer meu MBA.
Júlia: Pois é, você não vai querer esperar para casar, ter filhos ou ser dono de um apartamento em Pinheiros, não é mesmo? Enfim, eu espero que dê tudo certo...
... ...
Pedro: Júlia, entregar-se a alguém é muito bom, amar alguém é melhor ainda. Sentir que uma pessoa se importa contigo só por paixão, tesão, amor é a melhor sensação possível. E isso deixa a gente até um pouco inebriado. Por isso namorar é muito rock!!!
Júlia: Muito rock, você está louco?
Pedro: E apesar de a gente estar juntos há quase um ano, temos de levantar muita pedra para chegar ao rock, quer dizer, os Rolling Stones não chegaram a ser o que são se não tivesse existido um Louie Armstrong, os Sex Pistols nunca teriam existido se antes não surgissem os Beatles ou The Who. Assim como o Minor Threat não existiria sem os Ramones, e o Fugazi, Beastie Boys sem o Minor Threat. O Nofx não seria nada sem o Descendents. E tudo isso não existira se um cara lá atrás que tocava um piano fuleiro ou um menestrel não tivessem tocado os primeiros acordes dissonantes do mundo.
Júlia: Ã?
Pedro: O que eu quero dizer é que para construir um relacionamento profundo com raízes sólidas somos obrigados a passar por várias etapas, assim como o rock cresceu a partir da música clássica, do jazz e do blues.
Júlia: E o que isso tem a ver com Paris e com a gente?
Pedro: Sei lá... Tem a ver que em Paris eu quero solidificar meus estudos, construir um MBA.
Júlia: Você está falando que nosso relacionamento é superficial?
Pedro: Lógico que não. Eu só estou falando que quero me aprofundar nos estudos e no inglês.
Ficam ambos calados por alguns minutos.
Júlia: Faltou alguma coisa?
Pedro: Não sei.
Júlia: Deve ter faltado alguma coisa.
Pedro: Acho que faltou um Elvis...
Júlia: E nós insistimos demais em ouvir Wynton Marsalis...

FIM

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